Dr. Manuel Ferreira Camões, … “nosso” deportado de São Nicolau …

Dr. Manuel Ferreira Camões, … “nosso” deportado de São Nicolau …

Um homem íntegro, cidadão engajado, defensor dos direitos humanos contra um Estado déspota e poderoso, esquecido da história (de Portugal, e de São Nicolau), o “médico do povo”, cuja história continua por contar.

Por: José J. Cabral


A Inglaterra, que mantinha desde há muito uma aliança com Portugal, moveu influências para que o país não participasse activamente na Guerra.

Só em 1917, as primeiras tropas portuguesas, do Corpo Expedicionário Português, seguiriam para a guerra na Europa, em direcção a Flandres.

Portugal envolveu-se, depois, em combates em França e o Corpo Expedicionário conheceria a sua quase destruição. Nessa batalha, que marcou a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, o exército alemão provocou uma estrondosa derrota às tropas portuguesas. O moral do exército era tão baixo que houve insubordinações, deserção e suicídios. As tropas Portuguesas acabariam por se amotinarem no dia 4 de Abril de 1918, em pleno campo de Batalha.

Entre elas encontrava-se um jovem militar, que ao contrário, acabaria por se tornar no Português mais condecorado da primeira Grande Mundial.

Nasceu em 1898. Encontrava-se na Academia militar, quando eclodiu a I guerra mundial. Emancipado pelo pai, foi incorporado muito novo, à saída da academia militar aos 16-17 anos, seguiu para França. Combateu em solo Francês, designadamente na célebre Batalha de La Lys, integrado no Corpo Expedicionário de Portugal (C.E.P.) e que lhe valeram várias condecorações.

No regresso da 1.ª Guerra Mundial, licenciou-se do exército para cursar medicina em Coimbra, curso que viria a concluir em Lisboa para onde se transferiu, para “poder ficar mais próximo do poder e dos grupos de pressão” que tentavam derrubar Salazar.

La Lys, no cemitério de Richebourg em França, e junto ao monumento de La Couture onde estão sepultados 1831 combatentes portugueses da I Grande Guerra.

Terminado o curso de medicina, regressou ao exército, porque considerava serem os militares os únicos que na altura detinham os meios para lutarem contra a ditadura.

Arguto, por mais que tentassem, não conseguiram provas que lhe incriminasse. Mesmo assim foi preso e encarcerado no Forte de São Julião da Barra, sem poder se despedir da família, como comprova a carta que deixou para o pai, relatando as circunstâncias de sua prisão, e a solicitar o envio de algum auxílio através de seu colega Sílvio Pélico, que mais dia, menos dia acabaria preso.

Foi mais tarde deportado para Madeira, onde liderou a revolta contra o Estado Novo, por terem visto, a pobreza e a miséria com que viviam os Madeirenses. Traídos por um acordo com os Ingleses, acabaria por ser novamente deportado para a ilha de São Nicolau, sendo-lhe retiradas todas as suas insígnias e condecorações que a família jamais conseguiria recuperar.

Do edifício do ex-seminário onde foram encarcerados, foram transferidos para Tarrafal de São Nicolau, descrito assim pelo General Sousa Dias, nas cartas ao filho Adalberto:

“O local é simplesmente pavoroso. Tarrafal – misérrima povoação de pescadores, fica situado próxima e ao lado de uma de uma apertada ravina de ásperos e escalvados flancos elevados e de abruptos declives … 3 raquíticas árvores é a única vegetação que aí se encontra. O sol batendo todo o dia neste pedregoso e árido terreno sem que seja possível furtar à aderência de seus raios, converterá, certamente, a existência dos desterrados que para ali forem mandados, numa torturante vida de desfalecimento físico e moral. … mas há mais … a imperfeita descrição (…) fica muito aquém da realidade deste projectado “inferno”, digno da divina comédia dantesca!...

Há evidências de ter estado para acontecer uma revolta dos deportados (quase duas centenas) em São Nicolau. A partir dos Estados Unidos, Luso-Americanos desenvolviam esforços, com vista à constituição de um grupo de assalto com o propósito de libertar os cativos. Essas evidências são confirmadas pela dissertação de mestrado que Victor Borges defendeu recentemente na Universidade de Coimbra.

Tal circunstância justifica a repentina benevolência de Salazar, ao emitir ordem de soltura e pretenso apadrinhamento do regresso a Portugal, dos deportados que desejassem.

A doutor Camões, por ter sido quem coordenou o aprisionamento do governador da Madeira, e outros, Salazar decretou residência fixa em solo Sanicolaense. Àqueles que por terem constituído família ou por outros motivos quisessem ficar, exigiu constituição de depósito-fiança, ilibando o estado de qualquer responsabilidade, designadamente com despesas de repatriamento caso viessem a decidir pelo regresso.

Conta-se que, sem suspeitarem de nada, muitos deportados aceitaram a aparente generosidade de Salazar, para acabarem presos à chegada a Lisboa, re-encarcerados em Monsanto, de onde muitos não saíram com vida.

Tratava-se na verdade de uma medida para desmantelamento da colónia prisional de São Nicolau, cuja localização tinha-se revelado inadequada. De facto a ilha de São Nicolau possuía por essa altura, uma elite pensante, engajada e activa, que mantinha contactos além fronteiros, constituída pelos remanescentes do seminário. A própria proximidade do porto do Mindelo tornava a colónia vulnerável a eventual tentativa de assalto. E foi assim que por decreto, Salazar transferiu a colónia de Tarrafal de São Nicolau, para o outro Tarrafal na ilha de Santiago.

(…) Art.º 11.º - “A Colónia penal criada por este decreto poderá instalar-se provisoriamente, antes de realizadas as obras previstas no respectivo projecto, utilizando-se para a instalação provisória os meios adequados, e entre eles, os destinados ao Campo de Concentração da ilha de S.Nicolau”.

(…) Paços do Governo da República, 23 de Abril de 1936. – António Óscar de Fragoso Carmona – António de Oliveira Salazar – Mário Pais de Sousa - ….

Forçado a residência fixa, doutor Camões, edificou uma casa no alto de Calheta na então pacata aldeia piscatória de Tarrafal, e foi para lá morar.

Mudou mais tarde para Lompelado no vale de Fajã. Todavia, médico de profissão, tão logo lhe foi permitido pelo governo, fixou-se na vila da Ribeira Brava, onde se dedicou à profissão com tamanha abnegação, que quando era acometido pelas crises de reumatismo, que o impediam de se locomover, “transferia residência” para a enfermaria, construída por Frank Nhinhone, durante a 2.ª guerra mundial. Estando no hospital, mesmo convalescente, podia tratar e medicar “seus” doentes.

Sempre com a PIDE nas pernas, não se coibiu às ameaças; Sempre que tinha de passar certidões de óbito – passou centenas, talvez milhares, durante as carestias, indicava sempre com a verdade as reais causas da morte, …«fome»! Verdade que o regime não queria escrita, circunstância que lhe terá custado dissabores.

Foi-lhe recorrentemente negado o acesso à função pública. Um contrato precário constituía forma de pressão, com o propósito de o demoverem de seus ideais de liberdade e democracia, aos quais se manteve fiel até à morte.

Excertos do livro “SODADE DE NHÂ TERRA SANINKLAU” dão conta da acção humanitária e altruísta de dotor Camões:

… “ Nhâ Marê n’Tonha tentou persuadir o filho a renunciar à ideia. Sairia para as bandas de Fajã. Soube que a distribuição no vale era agora supervisionada por Dr. Camões que assegurava justa distribuição de ração. De certeza não lhe deixaria regressar desprovida”.

“ … Chegou a boa nova de que ninguém regressava vazio, desde que Dr. Camões foi encarregue de supervisionar a distribuição … ”

“ .. A mãe opôs-se à ideia do filho de se emigrar para São Tomé, porque teve conhecimento que Dr. Camões se negava a emitir “certificado de robustez”, exigido para contratação, com o argumento de que se tratava de uma nova forma de escravatura, em que apenas mudava a denominação de “escravo” para "contratado" ...

“ … Dr. Camões, metropolitano, também ele deportado, sabia das coisas. Se se negava a emitir certificado de robustez, sujeitando-se à perseguição da PIDE, era porque havia motivo muito forte por detrás. São Tomé não podia ser boa terra. Sim porque se para lá ir tinha de ser forçado, estava claro. Não prestava. Foi assim que muitos se esquivaram a tal destino, com ajuda de Dr. Camões que heroicamente contrariava a determinação superior, não obstante a advertência do Administrador Tadeu.

Por questão de ética e consciência profissional, derivado de seu intenso sentido de humanidade, não ia pôr sua assinatura sobre um documento que atestava robustez de esqueléticas criaturas mal-nutridas. Tinha certeza que a maioria nem sequer suportaria a travessia rumo ao Sul, sob o calor tórrido do atlântico equatorial. Paludismo encarregar-se-ia de matar os que conseguissem aportar a São Tomé… “

Era comum ele encaminhar os doentes carenciados e sem posses, para a enfermaria de Nhô Tomás Ramos, munidos de um bilhete, com instruções para aviar o medicamento, às custas dele. Após sua morte, a família ainda pagou dívidas decorrentes desse gesto solidário.

Doutor Camões regressou apenas uma vez a Portugal. Convidado a ficar, exigiu que fosse julgado, condenado ou ilibado. Tinha sido preso sem culpa formada, jamais conheceu os crimes que pudesse ter cometido. Regressaria a Cabo Verde, e aguardaria a sentença, após o que decidiria pelo regresso ou não. Indispunha-se a viver num país que prendia seus cidadãos, deportava-os sem sequer serem julgados. Não se lhe fez justiça, por isso viveu até à morte em 1968, na ilha de São Nicolau, terra que o acolheu, onde constituiu família e teve seus filhos.

Verdade que após o 25 de Abril o governo Português reconheceu-lhe os méritos. Condecorou e promoveu-o a título póstumo, circunstância que lhe assegurou direito a honrosa sepultura no panteão das forças armadas em Lisboa, prerrogativa reservada apenas a oficiais superiores. Porém, a família, num gesto de que é de se louvar, recusou a transferir os restos mortais, preferindo que jazessem não com honras de panteão, mas humildemente como preferiu por opção viver, no escuro da morada eterna da Tabuga.

1 Em Portugal, foi o General Norton de Matos, Ministro da Guerra entre 1915 e 1917, com a colaboração do General Fernando Tamagnini de Abreu e Silva, o responsável pela organização do Corpo Expedicionário Português, no centro de instrução de Tancos (o chamado milagre de Tancos) que tão depressa e bem (de acordo com relatórios oficiais) se transformaram em soldados aptos e capazes para um conflito duro, homens que pouco tempo antes, tinham uma vida civil, pacata e tranquila.

2 A Batalha do Lys ou Batalha de La Lys, também conhecida como Batalha de Ypres 1918, ou ainda Quarta Batalha de Ypres, deu-se entre 9 e 29 de Abril de 1918, na região da Flandres, no sector de Ypres. No cemitério de Richebourg em França, e junto ao monumento de La Couture estão sepultados 1831 combatentes portugueses da I Grande Guerra. Os portugueses, não motivados e muito mal preparados, acabaram por sofrer uma derrota estrondosa na Batalha de La Lys (sector de Ypres). Os Portugueses tiveram cerca de 7.000 baixas, sendo que o maior número foi de prisioneiros

3 O Armistício foi assinado em 11 de Novembro de 1918.

Uma homenagem de um filho de São Nicolau, reconhecido
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